“As mulheres exigem o que lhes é devido, os mesmos direitos e deveres para todos, respeitando o que de único cada um de nós acarreta, chamamos-lhe identidade”.
Esta é uma das frases do discurso do psiquiatra Júlio Machado Vaz proferido na conferência de abertura da sessão do Movimento LIFE que decorreu em Lisboa no dia 16 de maio.
Deixamos o texto da palestra na íntegra:
50 ANOS DE IGUALDADE?
A Organização escolheu, para esta charla, um título que acicatou a minha vertente psicopática. Perante a frase “50 anos de Igualdade”, acompanhada por um ponto de interrogação, alucinei projectar um slide com um gigantesco NÃO; e demandar a Gare do Oriente, rumo à Invicta. Seria injusto; preguiçoso; pouco profissional; tanta coisa mudou para melhor! E no entanto… Recordo declarações da Dra. Cláudia Ricardo ao Público, em Março de 2023: “vemos mais mulheres a aparecer no mercado de trabalho, mas as oportunidades para chegarem a cargos de liderança não são iguais”.
Casei-as com um texto, do mesmo ano, da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, intitulado “25 de Abril: 49 anos da liberdade das mulheres!” Termina assim: “Há, não obstante, ainda um longo caminho a percorrer para que as mulheres tenham condições de vida idênticas às dos homens, em todos os domínios: familiares (um uso dos tempos igualitário), económicos (um nível de rendimentos idêntico ao dos homens), tomada de decisão na esfera política, económica e cívica, na estrutura do emprego, na prevenção e no combate a todas as formas de discriminação e de violência masculina contra as mulheres e raparigas!”. Assim escorado, desisti – temporariamente… - do regresso ao Porto e ofereci-me o prazer da associação livre.
Permitam que dispa o fato de duvidoso conferencista e vista o de cicerone. No espaço e no tempo!, acompanhem-me a Londres. O ano? - 1858. Olhemos em volta, a sala divide-se: uns vêem a mulher no púlpito como uma fonte de inspiração; outros hesitam entre a atracção circense e a perigosa agitadora. O seu nome é Elizabeth Blackwell. Nasceu britânica, mas emigrou para os Estados Unidos, onde obteve uma licenciatura em Medicina, entreabrindo-lhe as portas a outras mulheres.
Os argumentos aduzidos para essa abertura não seriam hoje pacíficos. Partindo de uma visão essencialista da Mulher, declarava-a mais preparada para se dedicar ao bem-estar dos outros, em virtude de um trunfo intrínseco à sua natureza: o poder espiritual da maternidade. O Ensino e a Enfermagem seriam também incursões “naturais” na esfera pública e no mundo laboral, por se inserirem na área do Cuidar, razão pela qual não reivindicava o acesso a outras profissões.
Esse poder espiritual não se esgotava no acolher e cuidar o Outro, as mulheres eram moralmente superiores aos homens, deles se esperava que - um dia… - navegassem as mesmas águas. E por isso Blackwell se opunha à contracepção, vista como salvo-conduto para a luxúria masculina. Por último, se muitas feministas defendiam o celibato como fuga à submissão do casamento, a primeira médica punha a questão noutros termos: duvidava de uma dedicação plena à Medicina por mulheres que assegurassem o quotidiano de uma família.
Do mesmo modo pensava Florence Nightingale, “santa padroeira” da Enfermagem, cujas ideias sobre a arquitectura das unidades de saúde vimos rejuvenescer durante a pandemia. Ela recusou o casamento para abraçar uma vocação. Em 1850, em dia de aniversário, escrevia: “Tenho trinta anos, a idade com que Cristo começou a Sua missão. A partir de agora acabaram-se as coisas infantis e vãs, o amor, o casamento. Agora, Senhor, permite que apenas pense nos Teus desejos”. E num outro passo referia: “Paixões fortes, para nos ensinarem os segredos do coração humano, e a força necessária para as subjugar, são as chaves do reino, neste mundo e no próximo”.
Em resumo: ambas advogavam o papel das mulheres em determinadas profissões que se acomodavam a uma natureza feminina cuidadora e moralmente superior, mas viam como problemática a articulação entre vida profissional e familiar.
E em Portugal? Trinta anos depois das conferências de Blackwell, a 1 de Setembro de 1889, Elisa Augusta da Conceição Andrade abria consultório, no Porto, para doenças de senhoras e crianças. E o Diário de Notícias anunciava, com entusiasmo: “Para trás a touca de rendas e o avental de chita, para trás o tricot e a agulha de marfim, para trás o pot au feu! Honra à Ciência! Glória ao bisturi!”. Deliciosa imagem esta, o bisturi vencendo a agulha de coser!
Hoje, uma panóplia de ocupações, ao menos teoricamente, está ao alcance das mulheres. Mas a dicotomia esfera privada/esfera pública continua a perfilar-se, de boa saúde, por trás de discursos politicamente correctos. E mesmo a ambicionar os holofotes, à boleia de arautos que enumeram tarefas domésticas e educativas apenas ao alcance das mulheres. No seio de uma família nuclear majestática, indiferente à alargada que a antecedeu e a todas as geografias afectivas – e não sanguíneas… - que se lhe seguiram, e com ela coabitam sem a vilipendiarem. A superioridade moral de tais “juízes” não se deixa comover: são decretadas empobrecidas ou ameaçadoras, conforme a gravidade dos traços paranóides ou reaccionários de quem as julga.
A verdade é que as mulheres se espalharam – a pulso… - pelas mais diversas profissões. No caso da Saúde, a Medicina seguiu os passos da Enfermagem e depressa os anfiteatros viram a relação entre os sexos inverter-se, tendência seguida pelos hospitais, centros de saúde e estruturas assistenciais em geral. E contudo, para estranheza do observador externo e frustração das interessadas, o predomínio masculino reaparecia nas lideranças, suscitando a mais simples e perturbadora pergunta – porquê?
Não nos aconcheguemos no estrito regaço da Saúde. Passemos os olhos pelo Relatório de 2023 da McKinsey sobre as Mulheres no Local de Trabalho. O texto sublinha que a ambição continua a ser olhada como desejável nos homens, mas algo suspeita nas mulheres, opinião que traduz claro estereótipo de género.
E contudo, que Galileu nos perdoe, elas desejam mover-se. Tomemos o exemplo da pandemia no seu ocaso: 80% das mulheres queriam progredir na carreira, percentagem semelhante à dos homens e que resultava de uma subida de 10 pontos em relação aos valores pré-pandémicos. O aumento era sobretudo evidente nas mulheres com menos de 30 anos, nove em cada dez queriam ser promovidas.
Uma das principais razões avançadas foi a flexibilização do trabalho. Ela beneficiara ambos os sexos, mas os investigadores calculavam ter diminuído, em cerca de 30%, o desgaste nas mulheres, e evitado que 36% recuassem na ascensão profissional. A flexibilização também funcionaria como mecanismo igualitário, pois os locais de trabalho eram descritos como menos equitativos, antes e depois da pandemia, em especial no que diz respeito a minorias étnicas e à comunidade LGBTQI+.
Acresce que as mulheres correram mais riscos, por serem em maior número na linha da frente e – pasme-se! – por alguns equipamentos de protecção individual terem sido produzidos a pensar nos homens. Além disso, trabalharam mais horas e são a maioria de casos de COVID longo. E importa não esquecer que durante os confinamentos, direitos fundamentais nas áreas da saúde reprodutiva e da interrupção voluntária de gravidez foram penalizados. Como, de resto, a vigilância sobre a violência doméstica.
Importa realçar que no caminho para os lugares de topo, a desigualdade surgia precocemente, logo ao virar da esquina, leia-se, na primeira promoção. Por cada 100 homens encontravam-se 87 mulheres, mas a relação era ainda mais penalizadora se fossem levadas em conta as minorias. Bref: o caminho para a liderança era mais difícil e lento para as mulheres desde os primeiros degraus. Daí a recomendação de processos de escolha tão cuidadosos para quem iniciava a carreira como para os utilizados para escolher os que lhe atingiam o topo.
Uma chamada de atenção para esse topo. Mais do que um pico isolado, faz lembrar Montserrat, mas com uma particularidade: as mulheres predominam nas áreas dos Recursos Humanos e do Marketing e escasseiam nos Departamentos Financeiros, Tecnológicos e de Negócios. Curiosamente, é destes últimos que mais depressa se ascende ao estatuto de CEO…
Uma última palavra para as consequências das microagressões, tantas vezes desvalorizadas. As mulheres têm o dobro das hipóteses de as sofrer, abandonam as empresas três vezes mais e representam o quádruplo de casos de burnout. A desvalorização do seu trabalho leva a mais casos de síndrome do impostor, ou seja, a sensação de ser uma fraude, apesar de ter subido na carreira, com a inevitável insegurança que acarreta, “quando descobrirão que não mereço o lugar que ocupo?”
Regressemos à nossa área de (des)conforto, lançando mão do Relatório da Women in Global Health de 2023. Os números são avassaladores: dos 240 milhões de trabalhadores na área da Saúde. 70% são mulheres, que cobrem 90% dos lugares de primeira linha, mas ocupam apenas 25% das posições de liderança e decisão, para além de 6 milhões delas trabalharem sem remuneração. Eis o chamado Paradoxo XX em todo o seu deprimente esplendor.
Numa sociedade hipnotizada pelo lucro, aceitem a blasfémia de colocar a Economia antes da Ética. Porque o tratamento equitativo das mulheres produz o chamado Dividendo Triplo de Género. A saber:
- Atrai mais mulheres para as profissões da área da Saúde.
- Assim diminui o défice de – pelo menos… - 10 milhões de trabalhadores no sector.
- Com melhores condições, os profissionais permanecem no Sistema e esta conjunção impulsiona o crescimento económico.
No que às lideranças diz respeito, sobrevoemos alguns obstáculos culturais. Desde logo, o olhar social sobre os sexos: os homens são vistos como mais assertivos e decisores, as mulheres como empáticas e cuidadoras, mas “demasiado emocionais”. Se o não forem, e cultivarem um estilo considerado masculino, esperam-nas adjectivos como mandonas ou diagnósticos sobre a orientação sexual. Recusando esta visão dicotómica e essencialista – que valeu à senhora Thatcher a alcunha de Lady with Balls… -, é curioso verificar que os estilos de liderança, em geral, divergem. Os homens preferem estilos mais transaccionais, com objectivos claros e não menos claras recompensas e punições, que tendem a perpetuar o status quo. As mulheres cultivam estilos mais transformadores, que favorecem a colaboração, o empoderamento e a delegação de competências.
Alguns autores salientam que o estilo das mulheres pode explicar o recurso a chefias femininas em tempos de crise, na esperança de que a sua empatia acalme tempestades. Apelidaram o fenómeno de “falésia de vidro”, pois o risco de falhar será maior, com a consequente queda no abismo. Quanto ao tecto – e não telhado… - de vidro, é um conceito clássico. Como já foi mencionado, as mulheres em geral e determinadas minorias em particular encontram dificuldades na ascensão profissional. Valha a verdade, talvez se devesse chamar de vidro fosco, os entraves são muito pouco transparentes!
Saliento a penalização da maternidade, que começa na empregabilidade e continua na ascensão profissional. Mas é bom não esquecer que todas as formas de assimetria de poder favorecem o assédio moral e sexual, que urge denunciar e punir severamente. Os especialistas falam da imperiosa necessidade de sensibilizar as chefias masculinas, de modo a que, consciente ou inconscientemente, não cerrem “fileiras corporativas”. Atrevo-me a sugerir a sensibilização dos homens em geral, sobretudo os mais jovens, não é raro ouvi-los duvidar da justeza de reivindicações feministas, considerando a Sociedade já igualitária. E em pano de fundo ressoa a famosa pergunta de Freud, em 1932: “Mas afinal o que querem as mulheres?”.
Retomando a questão da liderança feminina, mas em termos globais, lembro as palavras de Jacinta Ardern: “Espero ter deixado a crença de que podemos ser gentis mas fortes. Empáticos mas decididos. Optimistas mas focados. Que podemos ter o nosso próprio estilo de liderar”.
Também o desejo, mas os primeiros sinais na liderança política não foram animadores. O olhar social sobre as Chefes de Estado foi de uma crueldade voluptuosa. Das festas em que participavam às bebidas que consumiam, passando pela vida familiar, tudo sofreu uma devassa infame, sem paralelo no mundo político masculino. Será de espantar o relevo dado recentemente pela imprensa a um estudo de Harvard, que sublinha o lamento das mulheres mais velhas: terem dado tanta importância à percepção dos outros a seu respeito, assim castrando desejos e ambições? Não. Assim como Foucault, dissertando sobre o Bio-Poder, falava do regard médical, que, a coberto da Ciência, decreta onde nos situamos na chaveta normal/anormal, também o olhar social, ainda sobretudo masculino, assegura a sobrevivência de um duplo-padrão que poderia reivindicar a célebre frase de Mark Twain: “a notícia da minha morte foi um exagero”.
Escolhesse eu um sub-título para esta conversa e, eterno e grato fã dos Beatles, ele seria a longa estrada ventosa. Porque o caminho recusa fim à vista, em Março a LIFE falava de 132 anos de espera até atingirmos a paridade. E depois há os ventos, que não se vêm revelando fagueiros. De tal forma, que direitos considerados adquiridos se vêem ameaçados ou revogados, mesmo em países que se arvoram em paladinos das liberdades, como os Estados Unidos. Há ventos que nos fustigam de frente, torna-se inevitável resistir antes de avançar, algo vai mal quando um antigo membro do governo português assume que, no desempenho das suas funções, tudo tentou para limitar o acesso das mulheres à interrupção voluntária de gravidez.
Sejamos claros: em pleno século XXI, as palavras singelas de Susan B. Anthony, que morreu, também ela solteira, em 1906, continuam insuportavelmente distantes: “A verdadeira República: homens, os seus direitos e nada mais; mulheres, os seus direitos e nada menos”.
Eis a resposta à dúvida de Freud, que sobrevivia após décadas de prática clínica – as mulheres exigem o que lhes é devido, os mesmos direitos e deveres para todos, respeitando o que de único cada um de nós acarreta, chamamos-lhe identidade.
Pese embora o respeito que merece Susan B. Anthony, o ponto de referência deste Encontro é o percurso do país após o 25 de Abril. Ninguém resumiu tanta esperança e fome de justiça em tão poucas palavras como Sophia:
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Se deixarmos de nos bater, decretando estes versos utópicos e suficiente uma caricatura de liberdade paritária, poderemos reivindicar tudo; anunciar tudo; festejar tudo. Menos uma coisa: ter cumprido Abril.
Júlio Machado Vaz
16 de maio de 2024